sexta-feira, agosto 12, 2005

Hocus-Pocus

Hoje acordei e descobri que sou mágico. Basta-me estalar os dedos para mudar as coisas. Assim, a minha vida mudou muito nestes últimos dias: de um dia para o outro, tornei-me cidadão anónimo, sem identidade, registo ou cadastro; o meu carro deixou de ser meu e os dias passados ao lado do instrutor, a travar e trocar mudanças, de repente deixaram de fazer sentido; e fiquei incontactável, fora do alcance de qualquer amigo, familiar e demais personagens da minha vida. Consegui ainda transformar o Amor em Ódio, também com quatro letras, é certo, mas com palavras ríspidas em vez de beijos, gritos em vez de carinhos e desilusão em vez de sonhos.
E foi assim que mudei a minha vida, apenas com um estalar de dedos. Nada mau, parece-me a mim. Mas ainda tenho que treinar mais, porque há coisas que não consigo fazer. Por exemplo, já tentei com todos os dedos das duas mãos, mas não consigo voltar a pôr as coisas como estavam, secar as minhas lágrimas ou desembrulhar o aperto que tenho no estômago. Esse truque ainda só o vi no sorriso de uma menina.

quarta-feira, agosto 10, 2005

O Dia-Não (ou as Insónias enquanto Sintoma de Insatisfação)

Era uma vez uma menina que não conseguia dormir. Quer dizer, ela conseguir, conseguia, mas só de vez em quando. Dizia a menina que tinha um padrão: nas “alturas más”, ficava acordada três-dias-sim-um-dia-não. E ficava muito aflita, a pensar que os três-dias podiam tornar-se quatro-dias e depois cinco-ou-seis, e que nunca mais ia conseguir dormir o suficiente para sonhar os sonhos que as meninas sonham. Porque as crianças sonham muito, e aquela não era excepção; aliás, ela sonhava até de olhos abertos. Naqueles olhos castanhos, grandes e profundos, cabia o mundo inteiro, as coisas de ontem e as de amanhã – porque as de hoje passavam sempre num instante, num piscar de olhos, engolidas pelas pestanas vorazes da menina.

A vida corria, ali, a grande velocidade, com o perigo a espreitar a cada gesto, a cada palavra, a cada olhar, mas sempre a acelerar, porque quando se pára nem sempre se consegue arrancar outra vez. Era isso que pensava a menina, quando se voltava e (re)voltava na cama, num frenesim ritual que se repetia três-dias-sim-um-dia-não. E há tantas coisas para fazer, mesmo quando não se vê nada e só se ouve o relógio tIC-tAc-TiC-taC!

A menina, pequenina, sai da cama de mansinho e vai fazer. Qualquer coisa. O que importa é não estar parada.

Não demora muito até o sol entrar, guloso, pelas frechas da janela - ou seriam os pais da menina? -, a chamá-la para a escola. Um beijo grande e um sonoro “Bom dia!”, são quase tão bons como torradas e leite com chocolate... mas hoje a menina não sorri, não fala e não se mexe. A vida corre mais devagar, com as coisas de ontem a parecerem muito longe e as de amanhã desfocadas - viver o dia-a-dia é difícil, quando percebemos que as coisas de hoje não nos agradam. Mas às vezes é preciso parar. O Mundo continua a estar lá para o abraçares com as duas mãos, menina; podes parar e sonhar descansada.

Amanhã é dia-não.