sábado, outubro 16, 2004

O hábito faz o monge

Amor: s. m. ; do Lat. amore ; viva afeição que nos impele para o objecto dos nossos desejos; inclinação da alma e do coração; objecto da nossa afeição; paixão; afecto; inclinação exclusiva;

- captativo:vd. amor possessivo;
- conjugal: amor pelo qual as pessoas se unem pelas leis do matrimónio;
- oblativo: amor dedicado a outrem;
- platónico: intensa afeição que não inclui sentimentos carnais;
- possessivo: amor que leva a subjugar e monopolizar a pessoa que se ama; o m. q. amor captativo.

Hábito: s. m. ; do Lat. habitu; estado, modo de ser; disposição adquirida pela repetição frequente de um acto; maneira usual de ser; uso; costume; vestes de um frade ou freira.

Quer queiramos quer não, os comportamentos humanos e animais são guiados pelas emoções. Os actos de comer um bitoque, lavar os sovacos ou beijar uma pessoa têm subjacentes determinadas motivações (conscientes ou não) que nos movem; do mesmo modo, o cão que corre atrás de uma cadela na rua, o gato que deixa uma prenda no tapete da sala ou o José Castel-Branco que passeia por paisagens rurais de chinelos e saia comprida, são todos guiados por emoções, neste caso mais comummente designadas por "impulsos para a acção" para dar um ar mais irracional à coisa e manter a raça humana num patamar superior.
Motivação e emoção são, portanto, basicamente a mesma coisa, no sentido em que ambas movem o organismo para a acção - se quisermos ser mais românticos, podemos fazer a distinção entre motivação como um impulso geral para a acção, e emoção como aquilo que dá cor às motivações, originando determinado comportamento em detrimento de outro.
Vamos pegar num exemplo simples: a situação clássica de avistar alguém conhecido num transporte público. Se estivermos alegres, geralmente vamos ter com a pessoa ou chamamos a sua atenção, metemos conversa mesmo que não tenhamos assunto e agimos como se a pessoa em questão fosse a nossa melhor amiga, mesmo que só tenhamos anteriormente trocado meia dúzia de palavras com ela em toda a nossa vida. Se, pelo contrário, estivermos cansados ou de trombas (justificadas, certamente, porque as trombas têm sempre razão de ser, pelo menos para o próprio), fazemos os possíveis e os impossíveis para nos camuflarmos entre a selva humana/urbana que nos rodeia: viramos as costas, olhamos fixamente pela janela (mesmo que vamos dentro de uma carruagem de metro), lemos outra vez o jornal comprado três dias antes ou então escondemo-nos atrás de alguém enquanto procuramos um lugar no outro extremo do dito transporte.
O facto de termos muitas emoções à disposição é bom, porque nos permite justificar praticamente todos os nossos comportamentos: fiz isto porque estava triste, fiz aquilo porque estava alegre, reagi assim porque tive medo.
Aqui há que distinguir entre emoção, entendida como uma "reacção automática que permite ao organismo responder a certas situações e objectos de forma não deliberada", e sentimento, que resulta já da elaboração e reflexão permitindo fazer a ponte entre as reacções automáticas e o mundo da consciência e do livre-arbítrio. Por outras palavras, as emoções são reacções involuntárias, intensas e de curta duração (como o medo que sentimos quando vemos um cão a ladrar ameaçadoramente), enquanto os sentimentos correpondem a estados afectivos mais duráveis e intelectualizados que podem, ou não, estar relacionados com emoções experimentadas anteriormente.
E assim, depois de uma série de curvas e contra-curvas, cheguei à questão central desta divagação: como definir o Amor?
"- É emoção, certamente", dirão os apaixonados, "pois é puro, intenso e involuntário"; "- É sentimento", dirão os outros, "pois o verdadeiro é duradouro e vai-se construindo e reforçando ao longo do tempo".
Cada um, neste caso, terá a sua opinião, e poderá não estar disposto a abdicar da sua perspectiva e, consequentemente, do seu modo de pensar, agir e estar.
Eu considero que o Amor é um sentimento. À "irracionalidade", como as conversas sem sentido, as dores de estômago, os suores, o não saber o que dizer, a organização de toda a nossa vida em função da pessoa amada mesmo que ela não saiba que existimos, chamo Paixão. Ora, dizem vocês, visto desta maneira, o amor não presta, é apenas Amizade. Bem, acho que o Amor pode ser considerado um hábito. O hábito de dizer as mesmas coisas românticas e parvas à mesma pessoa, várias vezes ao dia; o hábito de beijar os lábios da pessoa amada e esquecer todas as preocupações do mundo durante os segundos, minutos ou horas em que as línguas dançam slows ou valsas; o hábito de oferecer coisas só pelo prazer de ver um sorriso de felicidade; o hábito de falar das mesmas coisas e de coisas diferentes todos os dias com a mesma pessoa. Mas é também o hábito de estar apaixonado, de considerar essa pessoa a mais importante de todas e de continuar a desejar a proximidade física e intelectual.
O Amor verdadeiro, apesar de ser um hábito, não é enfadonho, porque a Paixão continua a estar presente. Não é preciso abdicar de um para ter o outro. É claro que existem várias formas de Amor: o Amor conjugal, o Amor oblativo, o Amor platónico, o Amor possessivo. Assim, da mesma forma que podemos falar de "paz podre", também podemos falar de "Amor podre". Como dizem os adultos, o hábito faz o monge. Só precisam de ter atenção para verem se têm de pôr o vosso a lavar.